Estando Deus oculto, toda
religião que não diz que Deus está oculto não é verdadeira; e toda religião que
a isso não faz referência não é instrutiva. A nossa faz tudo isso: Vere tu es
Deus absconditus (Is 45:15).
Essa religião, que consiste em
crer que o homem desceu de um estado de glória e de comunicação com Deus a um
estado de tristeza, de penitência e de afastamento de Deus, mas que, depois
desta vida, seremos restabelecidos por um Messias que deve vir, sempre existiu
sobre a terra. Todas as coisas passaram, subsistindo aquela para a qual todas
as coisas existem. Os homens, na primeira idade do mundo, foram arrastados a
toda sorte de desordens, embora houvesse santos como Enoc, Lamec, e outros, que
esperavam pacientemente o Cristo prometido desde o começo do mundo. Noé viu a
malícia dos homens no mais alto grau e mereceu salvar o mundo em sua pessoa
pela esperança do Messias, do qual foi ele a figura. Abraão estava cercado de
idólatras, quando Deus fez com que ele conhecesse o mistério do Messias, que
ele saudou de longe. No tempo de Isac e de Jacó, a
abominação estava espalhada sobre
toda a terra: mas, esses santos viviam na fé; e Jacó, morrendo e abençoando
seus, filhos, exclama, num transporte que o obrigou a interromper seu discurso:
Eu espero, meu Deus, o Salvador que prometeste: Salutare tuum expectabo, Domine
(Gn 49:18).
Os egípcios estavam infectados de
idolatria e de magia; o próprio povo de Deus era influenciado por seus
exemplos. No entanto, Moisés e outros acreditavam naquele que não viam e o
adoravam olhando para os dons naturais que ele lhes preparava.
Os gregos e os latinos, em
seguida, fizeram reinar as falsas divindades; os poetas fizeram cem diversas
teologias: os filósofos se separaram em mil seitas diferentes: no entanto,
havia sempre, no coração da Judéia, homens escolhidos que presidiam à vinda de
um Messias que só por eles era conhecido.
Ele veio, enfim, na consumação
dos tempos: e, desde então, viram-se nascer tantos cismas e heresias, tantos
desmoronamentos de Estados, tantas mudanças em todas as coisas; e essa Igreja a
que adora aquele que sempre foi adorado subsistiu sem interrupção. E o que é
admirável, incomparável e inteiramente divino, é que essa religião que sempre
durou foi sempre combatida. Mil vezes esteve na iminência de uma destruição
universal; e, todas as vezes que se achou nesse estado, Deus tornou a
levantá-la com golpes extraordinários de potência. É assombroso que assim seja
e que ela se mantenha sem dobrar-se e curvar-se sob a vontade dos tiranos.
Os Estados pereceriam se não se
fizesse com que as leis se submetessem freqüentemente à necessidade. A
religião, porém, nunca sofreu isso, nunca usou disso. São necessários ou esses
acomodamentos ou milagres. Não é de estranhar que nos conservemos submissos, e
isso não é propriamente manter-se; e ainda pereçam eles, enfim, inteiramente;
não há o que tenha durado mil e quinhentos anos. Mas, que essa religião se
mantenha sempre inflexível, isso é divino.
Blaise Pascal, Artigo III, Marcas da verdadeira religão, VII.