Recordarei os feitos do Senhor; sim, me lembrarei das tuas maravilhas da antiguidade 12. Meditarei também em todas as tuas obras, e ponderarei os teus feitos poderosos. (Salmos 77:11)
Eu me lembrarei das obras de Deus. O profeta agora, inspirado com nova coragem, vigorosamente resiste ás tentações, as quais por tanto tempo haviam prevalecido contra ele com o intuito de esmagar sua fé. Esta recordação das obras de Deus difere da recordação da qual ele previamente falou. Então contemplou à distância os benefícios e achou a contemplação deles insuficiente para suavizar ou a sua tristeza. Aqui ele toma posse deles, por assim dizer, como testemunhos que garantiam a eterna graça de Deus. Para expressar a mais profunda seriedade, ele repete a mesma sentença, com uma afirmação na forma de interjeição; pois a palavra, ki, é aqui usada simplesmente para confirmar ou realçar a afirmação. Tendo, pois, por assim dizer, obtido a vitória, ele triunfa na recordação das obras de Deus, estando firmemente persuadido de que Deus continuaria o mesmo como se mostrara desde a antiguidade. Na segunda sentença, ele enaltece veementemente o poder que Deus exibira na preservação de seus servos: Lembrar-me-ei de tuas obras maravilhosas da antiguidade. Ele emprega o singular, teu decreto ou tua obra maravilhosa; porém não hesitei em corrigir a obscuridade mudando o número. Encontrá-lo-emos logo depois empregando o singular para denotar muitos milagres. O que ele quer dizer, em suma, é que o maravilhoso poder de Deus que sempre publicara pela preservação e salvação de seus servos, contanto que meditemos devidamente sobre ele, é suficiente para capacitar-nos a vencer todas as angústias.
À luz deste fato, aprendamos que, embora às vezes a lembrança das obras de Deus nos traga menos conforto do que havíamos desejado, e nossas circunstâncias requeiram, devemos, não obstante, esforçar-nos para que a exaustão produzida pela tristeza não descoroçoe nossa coragem. Isso é merecedor de nossa mais cuidadosa atenção. Em tempos de tristeza, nutrimos sempre o desejo de achar um remédio que mitigue sua amargura; porém a única maneira pela qual podemos fazer isso é lançar nossas preocupações sobre Deus. Entretanto, amiúde sucede que, quanto mais perto ele esteja de nós, mais, no aspecto externo, ele agrava nossas dores. Portanto, muitos, quando não derivam nenhuma vantagem deste curso, imaginam que não podem fazer melhor que esquecê-lo. E assim sentem aversão por sua Palavra, porque quando a ouvem sua angústia é antes agravada em vez de mitigada, e, o que é pior, desejam que Deus, que assim agrava e inflama sua tristeza, se mantenha à distância. Outros, sepultando a lembrança dele, se devotam totalmente às atividades mundanas. Estão num extremo muito oposto ao do profeta. Embora ele não experimentasse imediatamente o benefício que teria desejado, todavia ainda continuou a ter Deus diante de sua vista, sabiamente apoiando sua fé nesta meditação: como Deus não muda seu amor nem sua natureza, ele não pode fazer outra coisa senão mostrar-se por fim misericordioso para com seus servos. Que nós também aprendamos a abrir nossos olhos para vislumbrar as obras de Deus; cuja excelência é de pouca importância em nossa estima, em virtude da opacidade de nossos olhos e de nossa inadequada percepção delas; as quais, porém, se examinadas atentamente, nos encantarão com admiração. O salmista reitera no versículo 12 que ele meditaria continuamente sobre essas obras, até que, no tempo oportuno, recebesse a plena vantagem que esta meditação se destina a oferecer. A razão por que tantos exemplos da graça de Deus em nada contribuem para nosso proveito, e fracassam em edificar nossa fé, é que tão logo temos começado a fazer delas os temas de nossa ponderação, nossa inconstância nos afasta para outras coisas, e assim, em seu exato começo, nossas mentes logo perdem a imagem delas.
João Calvino, O livro dos Salmos, volume 3
05-10-16