E eu digo: Isto é minha enfermidade; acaso se mudou a destra do Altíssimo? (Salmos: 77. 10)
E eu disse: Minha morte, os anos da destra de Deus. Esta passagem tem sido explicada de várias maneiras. Alguns, derivando a palavra challothi de chalah, que significa matar, vêem o profeta como a dizer que, sendo esmagado por um grande acúmulo de calamidades, a única conclusão a que pôde chegar era que Deus o designara à completa destruição; e que sua linguagem é uma confissão de haver ele caído em desespero. Outros traduzem-na por estar doente, estar enfermo ou debilitado, o que é muito mais próprio ao escopo da passagem (veja nota 1). Diferem, porém, com respeito ao significado. Segundo alguns intérpretes, o profeta se acusa e se reprova por sua enfermidade mental e por não conseguir mais virilmente resistir à tentação (veja nota 2). É possível admitir esta explicação; pois o povo de Deus ordinariamente reunia coragem depois de passar um tempo hesitante sob o impulso da tentação. Entretanto, prefiro uma interpretação diferente, a saber: que esta era uma doença meramente temporária, e que por isso ele a compara indiretamente à morte; ainda quando se diz no Salmo 118.18: “O Senhor me castigou gravemente, porém não me entregou à morte.” Também: “Não morrerei, porém viverei.” Ele, pois, não tenho dúvida, se sente aliviado por nutrir a confiante persuasão de que, embora atualmente estivesse deprimido, era só uma questão de tempo, e que, portanto, se dispõe a pacientemente suportar essa doença ou debilidade, visto que ela não era para morte. Os comentaristas tampouco estão concordes quanto à exposição da segunda sentença. Os que conectam este versículo com os versículos precedentes, acreditam que o profeta fora a princípio reduzido a um estado tal de melancolia, que olhava para si mesmo como alguém completamente destruído; e que depois ele ergueu sua cabeça resolutamente, à semelhança daqueles que pensam achar-se lançados nas profundezas de um naufrágio, e que, repentinamente, se erguem acima das águas. Além disso, creem que isso deve ser entendido como uma palavra de encorajamento dirigida por alguém ao profeta, desejando que ele rememore os anos nos quais teve a experiência de que Deus era misericordioso para consigo. Será, porém, mais apropriado entendê-lo assim: Não tens razão de pensar que ora estás condenado à morte, visto não estares laborando sob uma doença incurável, e a mão de Deus está habituada a atingir todos aqueles a quem ela quer golpear. Não rejeito a opinião dos que traduzem shenoth, por mudanças (veja nota 3); pois quando o verbo hebraico, shanah, significa mudar, ou fazer uma coisa repetidas vezes, os hebreus tiraram dele a palavra shenoth, a qual empregam para denotar anos, de seu caráter giratório, de seu movimento em espiral, por assim dizer, na mesma órbita. Mas seja qual for a maneira em que a entendamos, o conforto de que tenho falado permanecerá firme, ou, seja, o profeta, assegurando-se de uma mudança favorável em sua condição, não olha para si como um condenado à morte. Outros dão uma interpretação um pouco diferente, olhando para ela de outro ângulo (veja nota 4), como se o profeta dissesse: Por que não suportas pacientemente a severidade de Deus desta vez, quando até aqui ele te tem acalentado com sua beneficência? Ainda como disse Jó [2.10]: “Recebemos o bem da mão de Deus, e não receberemos também o mal?” É mais provável, porém, que o profeta dirija sua visão para o futuro e tenha em mente que este o fez esperar os anos ou os acontecimentos da mão do Altíssimo, até que ele oferecesse clara e indiscutível evidência da volta de seu favor para com ele.
Notas:
1- Walford traduz: “Então eu disse: Minha doença é esta.:” Observa ainda: “Essa é a tradução exata do texto. Alguma doença penosa lhe sobreviera, a qual foi agravada pela depressão de seu espírito, o que o privou do vigor e energia mentais e envolveu todos os objetos de cores mais escuras ... ‘Eu disse: Esta é minha doença.’ Minha mente está oprimida pelos sentimentos mórbidos de minha estrutura física, e por isso as mudanças pelas quais a mão de Deus me afetou são vistas por mim em cores mais escuras, e estou pronto a renunciar a própria esperança de que ainda verei sua bondade como fazia comigo outrora."
2 - Segundo este ponto de vista, ele se refere ao que dissera nos versículos 7 a 9, nos quais pareceu chegar à conclusão de que jamais haveria um fim para suas aflições atuais, como se o decreto estivesse em andamento e Deus pronunciasse uma sentença final e irreversível. Aqui, porém, ele se refreia e se corrige por haver dado vazão a tal linguagem, e recorda de seus pensamentos de respeito a Deus de forma mais justa e sentimentos mais estimulantes. Reconhece seu pecado em questionar ou ceder ao sentimento de suspeita em referência ao amor divino e à veracidade das promessas divinas; e confessa que isso fluiu da corrupção de sua natureza e da fraqueza de sua fé; que ele havia falado temerária e apressadamente; e que se envergonhava e sentia seu rosto em confusão, por isso agora desistira e não mais iria avante.
3- Walford traduz o versículo assim: “Então eu disse: Minha doença é esta: A mudança da destra do Deus Altíssimo.” Ele observa: “Não há autoridade para a versão: ‘Recordarei os anos’; sua intenção é: o poder de Deus tem mudado e alterado minha condição; de um estado de saúde e paz, ele me trouxe doença e dores e tristezas. Disto, diz ele, me lembrarei para inspirar-me alguma esperança de que o poder que o tinha humilhado agora o exalte.”
João Calvino, O livro dos Salmos, volume 3
11-10-16
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